O trabalho enobrece, diz-se habitualmente. E assim é, com efeito, se esse trabalho é altruísta, útil e necessário.
Quando, porém, é ditado pela ambição e pela competição desenfreadas, por ditames caprichosos e prepotentes de quem se delicia a ver tudo a andar “a toque de caixa” só porque sim, pelo funcionar de uma “máquina” que não serve a fim algum, pela voracidade da fera humana, torna-se escravizante e desumano. Estupidifica, embrutece, gera um barulho contínuo que sufoca as vozes mais profundas no íntimo de cada Homem. Envolve-nos num turbilhão infindável de obrigações, técnicas, papeladas, trapalhadas…
Sucesso, carreira, empresa, riqueza, poder… frases, slogans e clichés sonantes (para aqueles em quem encontram eco) fazem impacto e encontram adesão em milhões e milhões que, como um insecto atraído por uma lâmpada, passam a girar à volta de ilusões e ilusões e ilusões, que primeiro acariciam e que depois são usadas para os controlar, manobrar e tornar numa peça mais de uma gigantesca engrenagem, de que poucos beneficiam e quase todos são vítimas.
Estamos no século XXI, no “admirável mundo novo” do progresso económico-material. Há muito já que ficou para trás a revolução industrial, a multiplicação de todos os tipos de serviços, o alargamento da tecnologia a praticamente todos os sectores salariais. Ainda há uma década, na Europa, se falava do “bem-estar social” (e tudo o que isso implica), como um escopo exemplar de uma nova civilização, alcançado ou a caminho de alcançar pelas nações mais vanguardistas e desenvolvidas. Entretanto, que mundo é o nosso, hoje?
Vieram as crises que, atrevemo-nos a dizer, dificilmente alguém compreendeu. Surpreendentemente, os grandes “craques” da economia, que logo se afadigaram em explicá-las, não as haviam previsto. Não sei se alguém explicou suficientemente que a crise de uns está ligada ao sucesso de outros e vice-versa. E as crises renovaram-se e refinaram-se. Hoje, surgem em semanas, em dias e horas, avassaladoras, gigantescas…
Acumulam-se legiões imensas de desempregados, e vamos vendo sempre o seu número a aumentar. As idades da reforma inverteram o ciclo e, em plena Europa, estão agora a galopar – quando o trabalho é cada vez mais exigente e desgastante, sob o chicote de avaliações, controlos, inspecções, relatórios, certificações, níveis de excelência e de todo o tipo de imposições e directrizes que se entenderam necessárias ou que, pura e simplesmente, se resolveu inventar. Em alguns países, os salários reais descem em flecha e afectam mesmo aqueles que vivem no limiar da pobreza. E tudo isto pode piorar ainda, a qualquer momento, se alguma agência de rating se lembrar de “desqualificar” um país, ou se os mercados estiverem agitados, nervosos…
Mas quem é essa “gente”? Mercados? Agências de rating? Quais os rostos, quais os desígnios, para que servem e a quem servem tais coisas que dispõem das vidas das multidões impotentes? Quem detém esse poder de, ao sabor das suas boas ou más disposições, moldar (para mais, degradando) as existências dos cidadãos de países, mais ainda, de regiões inteiras?
A maioria dos indivíduos, se está “agitado”, tem que se controlar. No limite, toma um calmante. Há outros métodos melhores. No entanto, se não se controlar (seja como for) e lesar gravemente a vida dos outros, pode ser preso ou penalizado de outra forma. Compreensivelmente…
E aos mercados financeiros, e às agências de rating, quem os controla? Onde estão os seus registos criminais? Quem os detém e quem os pune quando os seus pronunciamentos ciclónicos arrasam, estilhaçam e espatifam tudo e todos? Quem os pôs nesse pedestal titânico e tirânico?
Quem assume a responsabilidade global de impedir comportamentos (e/ou os seus efeitos) desastrosos para milhões de seres humanos?
Docilmente, fascinadamente, os adoradores do deus-dinheiro, do deus-empresa, do deus-trabalho profissional, do deus-materialismo acatam como oráculos infalíveis e incontestáveis os ditames dos chefes-de-fila da especulação financeira, e estão dispostos a tudo, para que a roda da (des)fortuna continue a girar! É sem surpresa que observamos os revolucionários materialistas de outrora, na mesma onda de egoísmo e alienação, passarem para lugares de honra do sistema (que diziam contestar). A programação sempre foi a mesma, no verso ou no reverso, de frente ou de costas, nesta passadeira infernal.
Deste modo, seguindo por este caminho, é de esperar que os oráculos financeiros continuem a exigir mais sacrifícios humanos, mais cortes (a palavra “sagrada” dos últimos tempos), mais carga e mais precariedade de trabalho. E a partir daqui, todas as manipulações, logros e enganos, todas as exigências e prepotências são possíveis: há que sujeitar-se a tudo para ter um emprego, ainda que a ganhar menos 5%, ou menos 10%, ou menos 30%; e a trabalhar mais 1 hora, mais 3 horas, mais 5 horas por dia; a fazer mais três, mais cinco, mais dez coisas; ainda que os cidadãos cheguem ao fim do dia esgotados, arrasados, comendo qualquer coisita, e logo se deixando cair na cama, exaustos. E a grande máquina continua a girar, e o monstro continua a crescer, e a alienação aumenta, mais e mais, com o homem cada vez mais perdido de si mesmo e da sua identidade real (que não é, não pode ser, a ocupação profissional que lhe “calhou” ter).
Entretanto, os Governos permanecem temerosos do imenso poder acumulado e detido pelos hiper-ricos. Estrebucham um pouco e limitam-se a pôr “paninhos quentes” na multiplicidade sempre crescente das feridas sociais. A última, que vem a afectar particularmente a Europa, diz respeito à nova idade da reforma instituída, o marco dos 67 anos.
Segundo as previsões, em 2040 a população da agora considerada 3ª idade será mais numerosa do que a infantil. E essa, provavelmente até aos 70 anos, quem sabe se até aos 75 ou mais, estará ainda no activo, e terá de competir com os mais novos no mercado de trabalho, mesmo que se arraste, mesmo que gema, mesmo que consuma numa luta cruel as últimas energias.
Pensemos com clareza: é isto que queremos? É isto bom? É isto uma fatalidade? O que é que estamos a construir para nós mesmos?
O monstro de uma sociedade materialista, capitalista e de especulação financeira que colectivamente vimos construindo, emancipou-se, ganhou vida própria, e hoje exige-nos demasiados tributos, tremendos sacrifícios.
Rasgou-se, ou melhor, tem vindo lentamente a esgaçar-se o tecido orgânico da Sociedade que construímos. O fosso entre os poucos que têm muito (e cada vez mais) e os muitos que têm pouco, alargou-se novamente. Estas situações acabam, mais tarde ou mais cedo, por gerar convulsões graves e por vezes violentas; e quem hoje está na mó de cima pode amanhã ser um alcatruz a submergir…
Estamos convictos de que virá o tempo em que será universalmente definido que as hiper-fortunas particulares, detidas por uma só pessoa ou agregado familiar, sem que beneficiem o bem geral, terão de ser vistas como um crime público – um crime que afecta gravemente a comunidade e o país onde se integram, ao serviço dos quais têm de ser utilizadas.
Com efeito, ao abrigo da intocabilidade dos donos das hiper-fortunas, milhões dos seus congéneres são arrastados para a perpétua privação, para a miséria, para a doença – e, por extensão, para o desemprego. Não se exagera quando se desenha um tal quadro. E é um facto que grande número dessas fortunas pessoais – a partir de um certo montante – não aproveitam sequer ao(s) próprio(s) detentores, que nem teria(m) possibilidades de gastar os recursos materiais acumulados. Objectivamente, são como que um cancro na sociedade. São energia forçosamente parada, cristalizada.
Na verdade, estamos todos aturdidos e esmagados pela nossa impotência colectiva. Muitos cidadãos (mesmo os mais novos) não ousam sequer pensar em termos de futuro, especialmente quando se trata do futuro longínquo (para tanto falta a coragem e a energia psicológica…). Quem pode asseverar que ao rondar a casa dos setenta anos terá vigor, saúde e ânimo para suportar as exigências físicas e psicológicas da comparência diária no trabalho externo? E como, com tal idade, se poderá competir com os mais jovens na manutenção do seu trabalho ou no acesso a um outro? É no mínimo irrealista e desumano. Estamos todos a “chutar para a frente” a assunção honesta, e a resolução cabal, deste problema…
Não preconizamos a pilhagem, o ódio, a violência arbitrária. Mas é impossível esquivarmo-nos ao facto incontornável: o que nunca foi mexido, terá de o ser. Não podemos adiar a distribuição mais equitativa dos proventos e recursos económicos a que todos têm direito. Novas leis e novos paradigmas que consignem o desígnio da Justiça social deverão ser criados e postos em prática. Isto não é futurologia, é algo de inevitável, numa assunção de civilidade.
Chegará também o tempo em que mecanismos internacionais justos e eficazes ponham termo aos excessos da especulação financeira e dos grandes usurários do mundo.
Num futuro breve, provavelmente, o direito a um emprego (pelo menos, no sentido que hoje lhe damos) será rotativo. A sociedade terá de ser participativa em termos produtivos, como é óbvio; contudo, e porque não haverá “empregos” – transversalmente e a tempo inteiro – para todos, a distribuição e atribuição de um lugar no mercado de trabalho não poderá, de modo nenhum, ser condição e ditar o direito à subsistência, aos bens comuns e essenciais.
É chocante? Talvez… Mas de uma coisa estamos certos – a noção e o entendimento colectivo estabelecidos de que apenas quando se tiver um “emprego” se tem direito à (con-)dignidade humana, terão de ser revogados. E tendo este horizonte incontornável pela frente, teremos todos, em conjunto, de criar novas formas de viver e compreender o sentido de Civilização. Caso contrário, o trajecto negro e cego que nos espera será o da regressão, por onde podem vogar as já esquecidas sombras da “animalidade”…
José Manuel Anacleto