Afinal, «o que mais importa» é pormo-nos em movimento, saudavelmente inquietos, contribuindo para que a vida possa produzir ecos de sentido no espantamento de ser.
Coerência de conjunto, eis o que aqui se pede, em vez de uma arquitectura coisificante, de um sistema “endurecido” e plasmado num qualquer “ismo” ou “ista”. Desmontar as representações estabelecidas sim, mas não substituindo-as por outras! Experiência desnuda para a qual teremos de atiçar a chama da Candeia e despir os espessos mantos do uni-forme, é preciso! E deixar voar o que de-forma, o que distorce a percepção de modo a viajarmos como ecrãs transparentes para que os dados da experiência o sejam também. Sejamos íntimos com a sorridente fluidez da experiência onde a discriminação é nada mais do que um percorrer dos patentes possíveis entre múltiplos vórtices de Vida. Mística e racionalismo, metafísica e ciência, porque não? O pensamento vivo é ele mesmo esse fluxo que não cessa de se surpreender. Aplique-se às questões metafísicas a via experimental dos horizontes abarcantes e às questões científicas a amplitude da vida, do movimento, do radical espantamento, essa absoluta simplicidade que é irrepresentável por vocábulos postiços e contorções filológicas, sinais evidentes das determinações redutoras e da ausência do que é saudável. Se temos de ser para viver, teremos de viver para poder ser. Façamo-lo por isso na grande fluidez da Vida, neste Magno-Sistema Azul a que damos o nome de Terra!
Reflictamos um pouco. Na sua maioria, o Sapiens Sapiens entender-se-á ainda hoje como a espécie dominante no planeta, como o pináculo da evolução, usando ainda as muletas de certos modelos exarados em inúmeros textos de uma dada ortodoxia “canónica”, ditados pelas hegemonias de circunstância e que parecem conferir aos “dominantes” inquestionáveis direitos de vida e morte sobre os seres ou recursos de vida que estão deste modo “naturalmente” disponíveis para a predação. Chegou o tempo de entender com mais profundidade a senciência da Vida, em que as espécies, por desempenharem o seu papel na cooperação global, possuem por isso mesmo, intrinsecamente, o direito à sua auto-determinação inerente a um plano maior, independentemente do que nós, sábio sábios, possamos entender sobre o seu grau relativo de consciência. A Consciência-Natureza-Vida-Movimento, ocultando-se sob as capas dos veículos exteriores surge no magnífico esplendor de um qualquer nicho ecológico em qualquer ponto do planeta-suporte, desde o mais simples átomo ao mais elevado Dhyani-Choan. Ora acresce ainda, se olharmos a Terra-Mãe de um outro ponto de vista, que esta contém recursos limitados que mais restritos se tornam ao serem severamente poluídos ou gastos irreverentemente. Como diz o economista K. Bolding, «quem postular um crescimento infinito num mundo finito ou é louco ou economista» (Latouche, 2011).
Esta singela entidade, o nosso duplamente sábio, parece ainda resistir às próprias evidências científicas de que o Sistema onde vive é o seu suporte natural de vida, e que ao contribuir decisivamente para a devastação desse sistema-suporte causa também e inevitavelmente a sua própria destruição. Mas, se optarmos por um leitura mitigada dos acontecimentos, torna-se ainda evidente que infligir sofrimento a esse mesmo sistema-suporte leva também a experienciar a sua parcela do sofrimento global. Ora, se for entendido que o gradiente de sofrimento tem uma relação directa com o patamar de consciência de uma espécie, nós todos, sábios sábios, candidatamo-nos ao lugar de grandes-sofredores, dado que pertencemos a uma espécie que possui um sistema nervoso bastante delicado e uma mente que, orgulhosamente, se entende como “criadora” “da” estética, “da” ética, “da” moral, “da” metafísica, “da” ciência, “das” tecno-ciências e “das” tecnologias, que já pode visitar outros corpos celestes, que tem uma dimensão alargada do espaço, que escreve milhões de livros mas que simultaneamente produz milhões de objectos dispensáveis na vertigem de um crescimento económico que julga poder ser infinito, o que obriga à produção de bens e poluentes para lá das taxas possíveis de auto-recuperação dos bio-sistemas que compõem o Grande Processo.
A tentativa de se pensar isolado, ao abrigo das consequência dos seus actos, parece ser coisa pouco Sábia por parte do nosso pequeno sábio sábio, mais próprio de alguém que, “olvidando” os venenos que colocou no que entende como sendo o “seu” pequeno quintal, chora ao assistir à morte de um ente mais próximo mas desvaloriza se o mesmo acontece a um outro qualquer. E, mesmo que não houvesse culpa imputável – certamente por comprovada demência do sujeito actuante – o nada fazer por parte dos outros sábios sábios para tentar reverter um processo que está em marcha, leva a que seja definitivamente ponderado esse título de sábios sábios que a nós próprios pretendemos continuar a atribuir. Saque e predação das âncoras naturais da vida como resultado de “maximização do consumo” tem levado a que surjam desculpas de ocasião, relatórios amigáveis por encomenda que sugerem estarmos a viver simplesmente um ciclo “natural” cuja responsabilidade em nada nos diz respeito e sobre o qual nada poderemos fazer e que deveremos seguir em frente arranjando talvez alguns meios de protecção extra. Qual o resultado destas lutas insanas dos jogos de poder? Haverá um vencedor e uma legião de estropiados ou simplesmente uma quantidade desconhecida de seres sencientes que competem tribalmente para sobreviver? Qualquer dos cenários é decididamente inaceitável. O modelo do “penso-rápido”, esse actor de superfície tão ao gosto do pensar redutor e alienante, não permite uma reflexão profunda e conducente a uma solução mais radical porque mais perto da raiz do problema, logo capaz de sugerir um novo paradigma verdadeiramente adaptado, verdadeiramente seguro, para enquadrar e propor soluções eficazes para um problema desta magnitude. Se continuarmos a deixarmo-nos afectar pela condução psicológica por parte de comerciantes e publicitários (a publicidade é o 2º maior orçamento mundial) que tentam inculcar nas massas falsas necessidades, permitiremos que o mundo se arruíne por excesso de produção, mais que não seja porque ciclos de crescente frequência no consumo e rotação dos “produtos” independentemente de todos os seus impactos na esfera da Vida, obriga a um número exponencialmente crescente de detritos cujos custos de tratamento têm um importante peso na manutenção das assimetrias sociais.
Entendemos que no seu patamar de inteligência o homem pode fazer melhor. Mas, se as suas acções não são libertadoras, se não toma consciência do seu sofrimento e das causas da insatisfação que lhe atormentam a existência, enfim, se não ama radicalmente o que com ele vive, como pode utilizar todo o seu potencial de forma harmoniosa, ser de facto verdadeiramente Sábio, fluir no movimento de modo a sustentar o espantamento? Essa insatisfação que o atormenta é evidência da não coincidência do todo na parte e obviamente da parte no todo. É que o sábio sábio tem de mudar primeiro, para poder mudar de rumo. Tem de perceber que o seu estilo de vida deve tornar-se ambientalmente responsável, isto é, ser abarcantemente Fraterno, de modo a que a palavra “sustentabilidade” seja entendida como condição de possibilidade da continuidade plena da vida, do movimento.
Na acção correcta, onde os frutos dessa mesma acção não são egotistamente desejados e o imperativo do dever fala mais alto, está o núcleo da atitude de vida benigna que postula o bem estar do outro como prioridade máxima, onde solidariedade e cooperação entre todos os seres sencientes remetem para uma noção de Mundo como integralidade unitiva, substanciada na diversidade complementar. Dito de outro modo, as inúmeras formas de vida que neste planeta têm o seu devir estão inalteravelmente interligadas e devem contribuir positivamente para esse mesmo movimento consoante as suas efectivas possibilidades. A incondicional decisão de promover o efectivo benefício conducente à libertação dessa insatisfação adquirida pela maioria dos sábios sábios como consequência dos seus aparentes obscurecimentos, da sua visão egocentrada é um outro pilar que se pretende subtilmente actuante.
Os modelos mecanicistas e uma visão linear do tempo estarão na génese de uma atitude de dominação e de fuga para a frente. Já Podolinsky (1850-1891), um pontifex da economia energética, socialismo e ecologia nas suas relações com as leis da termodinâmica (mormente a sua 2ª Lei), tinha tentado, sem aparente sucesso, sensibilizar Marx para a crítica ecológica (Latouche, 2011). Nos anos 40-50 do século passado, com Schrodinger, Wiener, Brillouin e Lokta e posteriormente nos anos 70, com o romeno Georgescu-Roegen, foram melhor entendidas as implicações da entropia no tocante à biologia-economia (Latouche, 2011). Hoje, diariamente, mais de 150 espécies desaparecem por razões de interacções desajustadas. Se a maioria dos biólogos admitem que estamos no meio da 6ª Extinção Massiva, (Feuerstein, The Yoga Tradition) que em profundidade e velocidade excederá a sua “antecessora”, ocorrida há cerca de 65 milhões de anos e que dizimou os dinossauros conjuntamente com mais de 70% de todas as formas de vida, surge a inevitável pergunta: porque continuamos a agir como meteoritos endógenos, destruindo vasto património que não é pertença de ninguém em exclusivo mas antes a condição de possibilidade da existência?
Excesso de consumo nos países ditos “desenvolvidos”, descomedimento de população e graves assimetrias globais, poluição feroz e em larga escala, de águas, solos e ar, depredação dos lençóis freáticos, manipulação genética e “indústria animal” (???) esse acto vergonhoso para uma espécie que se entende como “humana”, é dispor da Vida como “coisa”, geradora ou não de lucros, é atitude indefensável sob qualquer ponto de vista principalmente quando existem compassivas e reais alternativas para um viver sustentado.
Neste momento pede-se verdadeiramente uma focagem incisiva. É Amor-Sabedoria que se demanda, é Compaixão em Acção que tem imperiosamente de ser cultivada e praticada. Ou mudamos de paradigma de interacção ou este paradigma dará cabo de nós. Tornemo-nos presente, em movimento na paz onde todos sejamos vencedores, a começar por o sermos de nós mesmos. Mais do que aquilo que somos, e do que poderemos dizer sobre a vida dos outros, preocupemo-nos agora com estes nossos trabalhos. Devemo-lo aos de hoje e aos que amanhã virão. Para nós a serena alegria que vemos espelhada no rosto da criança que nos oferece a sua mão e sorri porque nada deseja senão ser, partilhar cada arco-íris como sendo o prenúncio de uma nova aurora que chega e passa, nada deixando de si, nem sequer a certeza de se repetir a não ser em promessa de estrelas fulgurantes. Saudavelmente inquietos, movamo-nos no que é (sempre) um novo presente.
É aqui, agora!
António E. R. Faria