PAN - UM NOVO PARADIGMA

Vivemos o fim de ciclo de um paradigma civilizacional esgotado, o paradigma antropocêntrico, cuja exacerbação nos últimos séculos aumentou a devastação do planeta, a perda da biodiversidade e o sofrimento de homens e animais. Impõe-se um novo paradigma, uma nova visão/vivência da realidade, ideias, valores e símbolos que sejam a matriz de uma nova cultura e de uma metamorfose mental que se expresse em todas as esferas da actividade humana, religiosa, ética, científica, filosófica, artística, pedagógica, social, económica e política. Esse paradigma, intemporal e novíssimo, a descobrir e recriar, passa pela experiência da realidade como uma totalidade orgânica e complexa, onde todos os seres e ecossistemas são interdependentes, não podendo pensar-se o bem de uns em detrimento de outros e da harmonia global. Nesta visão holística da Vida, o ser humano não perde a sua especificidade, mas, em vez de se assumir como o dono do mundo, torna-se responsável pelo equilíbrio ecológico do planeta e pelo direito de todos os seres vivos à vida e ao bem-estar.

Herdando a palavra grega para designar o "Todo", bem como o nome do deus da natureza e dos animais, o PAN - Partido pelos Animais e pela Natureza - incarna esse paradigma na sociedade e na política portuguesas.

O objectivo deste blogue é divulgar e fomentar o debate em torno de contributos diversos, contemporâneos e de todos os tempos, para a formulação deste novo paradigma, nas letras, nas artes e nas ciências.

terça-feira, 8 de março de 2011

3.ª Carta de um humano


No XXII Encontro Inter-Religioso de Meditação, façamos acontecer o diálogo na meditação activa enquanto abertura ao outro de nós mesmos e ao mundo

(A Agostinho da Silva e Raimon Panikkar)


Filosofia, Ciência, Religiosidade e Espiritualidade parecem surgir como evidências borbulhantes de um fundo comum que obriga os humanos a sustentar sistemática e ininterruptamente uma diversidade de perspectivas sobre o Mundo, a Vida/Movimento/Consciência como epifania. Ao longo dos tempos, as várias culturas que têm surgido parecem ter sempre pugnado pela busca de uma felicidade que parece continuamente escapar[1], evidenciando-se toda uma diversidade de modelos cognitivos e de propostas várias decorrentes das suas aporias de apreensão[2]. Hoje, na voragem alucinante das sociedades tecnológicas[3] vivenciamos o declínio de mais uma promessa: a do progresso ilimitado[4]. Quando o sujeito se retira do ter – a cultura do desejo, motivada pelo «incitamento perpétuo da procura, da comercialização e da multiplicação indefinida das [falsas] necessidades»[5] – e se abre a ser[6], então é ser em relação.

Este, vivendo por inerência em dinâmicas interactivas de mythos e lógos, no mister de se dizer, remete-se necessariamente para um constante diálogo onde se poderão adivinhar filamentos condutores (sūtras) que sustentam as pétalas de uma rosa do deserto, essa figura do silêncio que nada dizendo tudo permite escutar. O encontro das mundividências humanas surge assim como corolário obrigatório das suas actividades, como necessidade de vital importância para a tonificação depurativa das culturas intervenientes nos complexos processos relacionais. Quando os homens se acham, necessariamente as “religiões” encontram-se também. Nem sempre de forma pacífica como sabemos, mas uma coisa parece certa: as sínteses, tão inevitáveis, têm sempre surgido a partir de sincretismos[7]. O homem, entendido por Panikkar também como «um acervo de relações», como «um animal loquans», representa-se então como «um ser dialógico»[8]. Dar todo o contributo possível para que se viabilize uma multifacetada abertura é hoje de uma premência absoluta, de modo a que muitos[9], em espírito de abertura, possam dar o seu melhor contributo ao diálogo da/na Vida.

Nessa brecha, que é condição de possibilidade para uma reunião fraterna, o aprofundamento das questões tem de brotar do mais recôndito do humano, do intra para que se possa constituir como inter discurso de harmonização. Esse diálogo tem de ser encontro profundo e, porque «provém do coração dos dialogantes», é por isso mesmo síncrono com a Natureza, fazendo com que ela queira com os intervenientes. A actividade resultante do lógos humano – que em si não poderá abarcar a profundura – estará ainda assim, paradoxalmente, enraizada no símbolo e no mythos.

O diálogo implica também a mútua compreensão baseada numa escuta profunda (śravaa), numa análise (manana) e na realização prática[10] (nididhyāsana). Obriga a uma relação profunda entre os dialogantes onde «cada homem deve ser considerado como uma fonte única de auto-compreensão», sendo o locus fundamental para que esse encontro se possa localizar «entre a mera subjectividade e a pura objectividade». Assim, a sua humanidade realizar-se-á mais plenamente na confluência desse encontro. Neste contexto, nada deve ser “privado”, nem homem, nem religião nem, por maioria de razão, o próprio diálogo. Não sendo a verdade algo de objectivo com finalidade e propósito imediatista, a sua demanda é no entanto tarefa obrigatória do humano em si mesmo e como parte integrante da cosmo polis. Assim, é também uma actividade política, no seu sentido mais elevado, profundo e penetrante, nobre acção que resulta da contingência do limite de um dado patamar de consciência (apelidado por vezes como “condição humana”), por vezes de diálogos anteriores que remontam a anterioridades temporais de tamanha extensão que as enquadramos na proximidade das “origens” da humanidade. Alforria/paz, totalidade/equidade/união, remetem para um hólos, um todo, uma visão abarcante onde o diálogo é um maravilhoso antídoto para o solipsismo egotista.

O diálogo é ainda um catalisador que depura e também um pontifex que sustenta a comunicação dos moradores das paliçadas erguidas, facilitando a proximidade das tradições da grande família humana. Abre novas redes pela partilha da virtude, rejeita o proselitismo e vê no outro não somente mais um buscador de verdade mas também uma fonte de sabedoria. Dialogar assim é um acto da mais pura religiosidade, assente num entendimento holístico da Vida (logo também do homem), num complementaridade entre teoria e praxis, sujeito e grei, política e espiritualidade, epistemologia e ontologia, transcendente e imanente, conduzindo assim um processo alquímico da maior importância. Se entendermos que «toda a religião é um encontro»[11], tem de ser um encontro dinâmico de função espiralada cuja relação causal, embora subtil e inacessível ao entendimento comum, parece constituir o homem como agente dessa mesma causa e simultaneamente dos seus efeitos. E, porque é fraterno, esse diálogo jamais se deixará tocar pela indolência.

Nesses diálogos-encontros, as diversidades das miríades de especificidades são as evidências de um permanente processo, de um sistema em constante transmutação, sendo os seus resultados substancialmente de carácter provisório (dado aqueles serem funcionalmente incompletos), tanto nos seus aspectos racionais como simbólicos e míticos. No entanto, parecem remeter sempre para as camadas mais fundas, mais subtis da nossa consciência, ou seja, contribuem para um aprofundamento da nossa humanidade, tornando-nos mais simbióticos, internamente mais “polidos”, possibilitando um eco menos imperfeito da Vida em nós.

Nos patamares de consciência que detemos, dentro da onda de vida em que estamos integrados, coloquemo-nos face a face com este desafio, que não é só desta Era de Aquário que agora se inicia ou deste Kali Yuga que ainda não há muito começou. Diálogo e humanidade, sendo um par de dançarinos perenes, implicam que executemos essa arte com fraternidade, com maestria e humildade, buscando o Silêncio da Rosa que é a fonte para onde a Saudade inabalavelmente nos conduz.

«O diálogo, inevitável e indispensável, não é só um imperativo social, um dever histórico: é a consciência de que para sermos nós mesmos, simplesmente para sermos, devemos entrar em comunhão com a terra, abaixo, os homens a nosso lado, e no alto, os céus»[12].



[1] Talvez porque a tentem agarrar e chamar-lhe coisa sua, remetendo-se para um futuro como fuga para a frente: Imaginando-se o condutor do seu destino, é muitas das vezes meramente conduzido pelos seus apetites simplesmente egoístas.

[2] Parafraseando Antero de Quental, cada homem tenderá, segundo um dado modelo, a puxar um fio do manto de luz com que o absoluto se vela quando ocorre a vã tentativa de o capturar.

[3] Convém lembrar aqui as profundas assimetrias existentes em todo o planeta onde todo o tipo de carências são por demais evidentes. Enquanto uns degradam o planeta outros morrem ou sobrevivem em patamares assustadores de pobreza.

[4] Temos hoje um vislumbre do que temos feito enquanto civilização tecnológica e economicista, baseada em duas premissas que o paradigma actual carece de modo a poder funcionar: hedonismo radical (o prazer máximo, entendido como condição de “felicidade”) e egoísmo como condição de possibilidade de alegadamente conduzir à “harmonia” e à “paz”. A satisfação dos desejos subjectivos levados ao extremo, como norma ética conducente a uma suposta “vida boa”, quão longe de uma eudaimonia (felicidade por equanimidade, como objectivo da sabedoria; contentamento estável), da ataraxia (como estado de paz e harmonia por libertação das paixões) por epoché (suspensão do juízo redutor), é uma falácia que hoje amargamente se experiencia nas assimetrias profundas de uma civilização globalizada. Curiosamente, nenhum dos grandes mestres, conhecidos da humanidade, alguma vez indicou algo que semelhante fosse. Parece assim ser urgente uma inversão progressiva destas coordenadas (Kant, Thoreau, Schweitzer, Singer, Latouche, Capra e tantos outros), um novo paradigma que privilegie não o domínio mas sim o equilíbrio, o fraterno viver neste grande sistema que Lovelock denominou acertadamente como Gaia. Panikkar, achando a eco-logia talvez insuficiente, propõe um diálogo profundo com a Terra a que deu o nome de «ecosofia». Cf. Raimon Panikkar, O Diálogo Indispensável, com prefácio de Paulo Borges e prólogos de Enrique M. Magdalena e Pierre-François de Béthune, O.S.B., Zéfiro, 2007, p. 45).

[5] Cf. Gilles Lipovetsky, A Felicidade Paradoxal, Ensaio sobre a Sociedade do Hiperconsumo, Edições 70, 2007, p. 7.

[6] Sobre esta questão, ver Erich Fromm, Ter ou Ser?, Editorial Presença, 2ª Edição, 2002.

[7] Como diz Panikkar, «que seria hoje o cristianismo sem o profundo sincretismo que brotou das suas raízes hebraicas, gregas, romanas e germânicas?». Cf. Raimon Panikkar, op. cit, p. 39.

[8] Cf. Panikkar, idem, p. 41.

[9] Panikkar adverte que «as “religiões” não têm o monopólio da religião». Não cabendo aqui abordar, mesmo que muito superficialmente, toda esta problemática, diremos no entanto que o diálogo implica sempre o deixar abertas portas e janelas, numa evidência de vitalidade sem pretender a dominação; deverá constituir-se como campo de uma abertura total onde os problemas importantes e comuns a todos os seres sencientes, possam ser tratados como parte integrante, objectiva e subjectiva do grande ágape da Vida, nada devendo ser descartado a priori.

[10] Cf. Panikkar, idem, p. 64, onde este propõe como tradução, respectivamente “escuta”, “reflexão” e “contemplação activa”. Embora em outro contexto, sobre esta tripartição ver Chandradhar Sharma, A Critical Survey of Indian Philosophy, Motilal Banarsidass, Delhi, 12ª Reimpressão, 2009, p. 13.

[11] Cf. Panikkar, idem, p. 99.

[12] Ibidem, p. 107.

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