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O poeta latino Ovídio falando de Pitágoras:
«Havia em Crotona um homem da ilha de Samos que se exilara da pátria pelo ódio que tinha aos tiranos... Tinha com os deuses aturado comércio... O que sabia comunicava-o a uma multidão de discípulos que em um grande silêncio o admiravam...
«Foi o primeiro que condenou o uso de comer a carne dos animais: doutrina sublime, e tão pouco apreciada, cuja paternidade se lhe atribuia.
«Deixai, mortais», dizia, «deixai de vos servir de manjares abomináveis: dão-vos os campos searas abundantes; para vós vergam de frutos as árvores com os mais belos pomos e produzem uvas as vinhas. Tendes legumes [8] dum suave gôsto, excelentes alguns quando cozidos. O mel e o leite não vos são defesos. Enfim para vós, a terra é pródiga de suas riquezas e oferece-vos toda a espécie de alimento sem que necessiteis para sustentar-vos de recorrer à morte e à carnagem.
«Só aos animais convêm o comer carne, e ainda nem todos se sustentam dela. Os cavalos, os bois e as ovelhas vivem só de ervas; apenas as feras, os tigres, os liões, ursos e lobos fazem da carne seu sustento habitual.
«Que crime horrível lançar em nossas entranhas as entranhas de seres animados, nutrir na sua substância e no seu sangue o nosso corpo! Para conservar a vida a um animal, porventura é mister que morra um outro? Porventura é mister que em meio de tantos bens que a melhor das mães, a terra, dá aos homens com tamanha profusão, pródigamente, se tenha ainda de recorrer à morte para o sustento, como fizeram ciclopes, e que só degolando animais seja possível cevar a nossa fome?
«Procedia diferentemente a idade de ouro, ditosos tempos que nós assim chamamos. Contente com as plantas e os frutos que a terra produz, o homem não manchava a sua bôca com o sangue dos animais. As aves voavam sem temor no meio dos ares... O universo tranqùilo desconhecia laços e ciladas. Tudo era paz.
«Aquele, seja quem fôr, que para desgostar os homens dos alimentos inocentes com que se alimentavam, criou o costume de comer a carne dos animais, abriu na mesma hora a porta a crimes de todo o gênero; porque foi sem dúvida pela carnificina dêsses animais que o ferro começou a ser ensanguentado. Na verdade, é permitido tirar a vida aos animais que nos atacam, mas não nutrir-nos com a sua carne. Todavia, fomos mais longe ainda; quizemos sacrifical-os aos deuses...
«Que crime tinheis cometido, ovelhas inocentes, rebanhos tranqùilos, que dais aos homens um nectar delicioso, que para os cobrir vos deixais despojar do vosso manto e que enfim lhes sois mais úteis quando vos deixam viver do que quando vos matam? Que mal faz o boi, doce animal, incapaz de vos prejudicar e que não é senão para o trabalho?
«É necessario ser ingrato, desnaturado, de todo indigno dos bens que nos dá a terra, quando vamos tirar da [9] charrua esse animal tranqùilo, o melhor dos nossos obreiros, para o conduzir ao altar a receber o golpe fatal nessa cabeça que tantas vezes gemeu sob o jugo e, por um trabalho duro e penoso, tantas vezes nos renovou as searas.
«Não bastava aos homens cometerem tão grandes crimes, precisavam ainda da cumplicidade dos deuses, crendo que lhes podia ser agradavel o sacrificio d'um animal tão útil... Levam assim a vitima ao altar; lá, recitam sôbre ela orações que ela não ouve; põe-lhe entre as pontas, que foram doiradas, um bolo feito d'aquele mesmo grão que ele cultivou, e afunda-se-lhe no seio a lâmina sagrada...
«Logo lhe tiram as entranhas ainda palpitantes, para as consultarem e lerem n'elas os segredos dos deuses. Dizei-me, homens insaciáveis, d'onde vem esta avidez que só póde fartar-se em carnes proìbidas. Deixai tão criminoso uso. Segui os conselhos que vos dou. Sabei que, quando comeis a carne do boi que acabais de degolar, comeis aquele que vos lavrou o campo. Pois que é um deus que me inspira, só falo segundo a sua vontade...
«As nossas almas são sempre as mesmas, embora tomem formas diferentes conforme os corpos que animam. Que a piedade não seja sacrificada à vossa gula, que para vos saciar não expulseis dos seus corpos as almas dos vossos pais nem vos alimenteis do seu sangue...
«É acostumar-nos a derramar o sangue humano degolar animais inocentes e ouvirmos sem piedade seus tristes gemidos. É desumanidade não nos comovermos com a morte do cabrito, cujos gritos tanto se assemelham aos das crianças, e comermos as aves a que tantas vezes démos de comer. Ah! quão pouco dista d'um enorme crime!
«Funesta aprendizagem! Deixai tranqùilamente o boi lavrar a terra e seja a sua morte o termo natural da sua velhice. Contente-nos o velo do rebanho que nos livra da atmosfera agreste, e o leite que as cabras dão para nos nutrir: parti os vossos laços e as redes, não mais o visco engane a ave crédula. Não mais se leve ao cêrco o tímido veado, perturbado com as penas que o espantam, e que não mais se oculte o anzol em traiçoeiro engôdo. Matai os animais que podem fazer mal; mas contentai-vos em só lhes dar a morte e não os comer, e que só vos sirvam alimentos legitimos.»
- Ovídio (transcrito de Jaime de Magalhães Lima, O vegetarismo e a moralidade das raças, Porto, Sociedade Vegetariana - editora, 1912).
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