A primeira evidência que surge ao tentarmos precisar o sentido da palavra “cultura” é a dificuldade inerente a um conceito saturado de significados múltiplos , que ele próprio se revela como um produto histórico-cultural complexo e longamente elaborado, que ao ser usado em múltiplas acepções se torna afinal indefinido . Tal como acontece com outros conceitos fundamentais da cultura ocidental, torna-se necessário remontar à etimologia para o esclarecer.
A origem da palavra encontra-se na raiz indo-europeia kwel, que reencontramos no sânscrito chakra, o qual designa uma roda ou disco, seja a roda da lei universal (dharma), a ronda das existências condicionadas (samsāra) ou a dos centros de energia subtil no corpo humano. A cultura está assim ligada à imagem dinâmica da roda, que no plano material foi uma descoberta maior da humanidade e no plano simbólico figura a lei que rege todas as coisas, regulando a transformação dos seres e da energia vital que os anima. A mesma raiz origina o grego kuklos, que designa toda a forma redonda e de onde procedem o inglês wheel (roda) e o português ciclo. Em latim, é ainda a raiz originária do verbo colere, de onde procede directamente o latino cultura, no sentido literal de “mover-se habilmente” no cultivo da terra e no sentido figurado de cultivar o espírito (“cultura animi”, em Cícero), cortejar alguém ou cultuar uma divindade. Com efeito, o verbo colere possui já os sentidos de cultivar, cuidar; ocupar-se de; honrar, respeitar; proteger, vigiar (como acções dos deuses); habitar, morar; granjear as graças de alguém.
Repensada a partir da sua origem etimológica, a cultura surge assim inseparável, por um lado, de um movimento de rotação, circular e cíclico, que representa o dinamismo do mundo, da vida e da existência e implica o regressar constante à origem, mas não necessariamente a repetição ou o eterno retorno do mesmo (cf. Nietzsche), podendo depender desse regresso um progresso qualitativo, como acontece no “ciclo de estudos” que faz avançar o aluno. Por outro lado, a cultura supõe originariamente um cultivo atento, cuidadoso, respeitoso e protector, seja do lugar onde se habita, a terra e a natureza, seja da mente, que pode assumir a forma de um respeito religioso. Daí a proximidade entre cultura, agricultura e culto . É suposto que a cultura, fundada na compreensão das leis que regem os fenómenos e a vida no seu dinamismo e metamorfose cíclicos, seja a actividade pela qual se potencia toda a fecundidade da terra, da natureza e da mente, respeitando-as, cuidando-as e recolhendo os seus frutos, no reconhecimento do seu valor intrínseco (por vezes sagrado), sem a violência de as reduzir a um mero instrumento.
Como é evidente, não é isso que tem predominado no presente ciclo civilizacional, ao longo do qual a cultura humana, esquecendo as suas origens no comportamento dos próprios animais , cada vez mais se entendeu e valorizou como o processo de separação entre o homem, a natureza e os seres vivos, primeiro objectivando-os como exteriores a si e depois vendo-os como um obstáculo ou adversário a vencer, lutando para deles se libertar, dominando-os, domesticando-os e instrumentalizando-os para fins antropocêntricos que lhes negam qualquer valor intrínseco e os privam de consideração ética . O homem assumiu uma postura bélica e dominadora, traduzida por exemplo na designação do “campo”, pelos romanos, como ager, ou seja, campo de acção (agere), objecto feminilizado de uma dominação (imperium) viril (de vir, homem, macho) pelo senhor (dominus) da casa (domus) . Foi isto que, sobretudo a partir da revolução mecanista do século XVII e com a primeira e segunda revolução industrial, se viu como o progresso histórico e linear da humanidade em direcção ao Paraíso terrestre da abundância económica e do domínio científico-tecnológico sobre a natureza e a vida .
As consequências desta atitude, agravada pela explosão demográfica, pelo aumento do potencial tecnológico e pelo capitalismo económico, produtivista e consumista, liberal ou (dito) socialista, são hoje dramaticamente visíveis em todo o planeta, patentes na poluição e esgotamento dos recursos naturais, nas alterações climáticas, na destruição da biodiversidade, na exploração e massacre dos seres vivos, humanos e não humanos, e na degradação da qualidade de vida social, física e mental da humanidade. Esquecendo na sua arrogância ser inseparável da terra, da natureza e dos seres vivos - relaciona-se o latino homo (homem) com humus (solo, terra), de onde deriva “humildade” - , pervertendo o sentido originário da cultura - cultura de integração harmoniosa no mundo e não de desintegração violenta - , o homem passa a re-colher (colere), não os frutos benéficos e salutares do cultivo amoroso da terra e do espírito, mas os efeitos destrutivos da sua própria violência, que hoje arriscam tornar a vida de largas camadas da população, dentro de escassas dezenas de anos, insustentável no planeta.
Parece ser a hora urgente de recordar que, de acordo com a sua própria etimologia, enquanto dinamismo que implica o constante regresso à origem como condição evolutiva, a cultura humana tem de reassumir, sob risco de se autodestruir, a vocação originária de rodar em harmonia com as leis da natureza e da vida e reorientar assim a história dos homens para as fontes onde se pode regenerar . Isto supõe e exige uma profunda transformação do actual paradigma mental e ético, mas também social, económico e político, que possa conduzir a uma nova civilização. A sua base inquestionável tem de ser o respeito pelo valor intrínseco da natureza e de todas as formas de vida, bem como o reconhecimento dos direitos dos animais humanos e não humanos à vida e ao bem-estar. A humanidade tem de reaprender a viver de acordo com as leis fundamentais da natureza e da vida, com todas as implicações nos domínios da saúde, da alimentação, do urbanismo, da educação e da vida espiritual, social, económica e política. Formular, expressar e viver de acordo com estas implicações é o desafio e a tarefa que incumbe a pensadores, artistas, cientistas e religiosos, bem como a todos aqueles que queiram contribuir para preservar e regenerar a autêntica cultura nesta encruzilhada em que a barbárie a todos nos ameaça.
PAN - UM NOVO PARADIGMA
Vivemos o fim de ciclo de um paradigma civilizacional esgotado, o paradigma antropocêntrico, cuja exacerbação nos últimos séculos aumentou a devastação do planeta, a perda da biodiversidade e o sofrimento de homens e animais. Impõe-se um novo paradigma, uma nova visão/vivência da realidade, ideias, valores e símbolos que sejam a matriz de uma nova cultura e de uma metamorfose mental que se expresse em todas as esferas da actividade humana, religiosa, ética, científica, filosófica, artística, pedagógica, social, económica e política. Esse paradigma, intemporal e novíssimo, a descobrir e recriar, passa pela experiência da realidade como uma totalidade orgânica e complexa, onde todos os seres e ecossistemas são interdependentes, não podendo pensar-se o bem de uns em detrimento de outros e da harmonia global. Nesta visão holística da Vida, o ser humano não perde a sua especificidade, mas, em vez de se assumir como o dono do mundo, torna-se responsável pelo equilíbrio ecológico do planeta e pelo direito de todos os seres vivos à vida e ao bem-estar.
Herdando a palavra grega para designar o "Todo", bem como o nome do deus da natureza e dos animais, o PAN - Partido pelos Animais e pela Natureza - incarna esse paradigma na sociedade e na política portuguesas.
O objectivo deste blogue é divulgar e fomentar o debate em torno de contributos diversos, contemporâneos e de todos os tempos, para a formulação deste novo paradigma, nas letras, nas artes e nas ciências.
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segunda-feira, 14 de março de 2011
Nota para repensar o sentido da palavra Cultura
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