PAN - UM NOVO PARADIGMA
Herdando a palavra grega para designar o "Todo", bem como o nome do deus da natureza e dos animais, o PAN - Partido pelos Animais e pela Natureza - incarna esse paradigma na sociedade e na política portuguesas.
O objectivo deste blogue é divulgar e fomentar o debate em torno de contributos diversos, contemporâneos e de todos os tempos, para a formulação deste novo paradigma, nas letras, nas artes e nas ciências.
quinta-feira, 31 de março de 2011
Para uma ciência integrada na matriz de uma nova cultura holística – (11ª) breve reflexão
"Nenhuma força na terra pode parar uma ideia cuja hora chegou" - Victor Hugo
quarta-feira, 30 de março de 2011
Declaração de Princípios do Partido pelos Animais e pela Natureza - PAN
Consciente de representar o surgimento na política nacional de um novo paradigma mental, ético, cultural e civilizacional, emergente em todo o mundo, o PAN rege-se pelo princípio da não-violência, mental, verbal e física, e lutará firmemente pelos seus princípios contra ideias e práticas e nunca contra pessoas. O PAN assume-se como um partido inteiro, que visa promover o bem de todos, humanos e não-humanos, e não apenas de alguns.
segunda-feira, 28 de março de 2011
A caminho de um programa político - 2
domingo, 27 de março de 2011
Para uma ciência integrada na matriz de uma nova cultura holística – (10ª) breve reflexão
Para uma ciência integrada na matriz de uma nova cultura holística – (9ª) breve reflexão
A caminho de um programa político - 1
[enquanto se prepara o futuro programa político do PAN, vamos divulgando aqui as principais propostas já consagradas na actual Declaração de Princípios]
sábado, 26 de março de 2011
Da riqueza ao serviço do bem e da felicidade
– Buda Gautama
"Porque exigir um máximo de lucros (económicos), quando isso supõe arcar com um máximo de custos (sociais ou ecológicos)?"
“A razão de ser da actividade económica é garantir as condições básicas da vida humana. E será necessária a “maximização dos lucros” para a sobrevivência humana? […] A busca do lucro está decerto justificada do ponto de vista ético sempre que fiquem a salvo outros valores superiores, porém isto de modo algum justifica eticamente a maximização dos lucros como princípio da política económica. Porque exigir um máximo de lucros (económicos), quando isso supõe arcar com um máximo de custos (sociais ou ecológicos)?
• Um novo ordenamento da economia mundial requer uma ética de responsabilidade de economistas realistas com um horizonte idealista. Esta ética pressupõe, também na economia, sentimentos, ideais e valores, porém questiona-se de forma realista pelas consequências previsíveis, em particular as negativas, das decisões económicas e responsabiliza-se por elas.
• Na era pós-moderna, uma actuação económica responsável consiste em estabelecer um vínculo sério entre as estratégias económicas e o juízo ético.
• Este novo paradigma de ética económica concretiza-se na medida em que – admitida a legitimidade do lucro – submete a actuação económica à prova de se lesa bens ou valores superiores, ou se tem suficientemente em conta a realidade social e ambiental e também o futuro. Dado que não resulta nada fácil submeter os casos concretos a esta prova argumentativa de verificação ética, tornam-se necessários ordenamentos políticos específicos”
- Hans Küng, Weltethos für Weltpolitik und Weltwirtschaft [Uma ética mundial para a política mundial e a economia mundial], 1997.
"Por isso minha entrega à verdade impeliu-me para o terreno da política"
"Para olhar face a face o universal espírito da verdade que tudo penetra, é preciso que se seja capaz de amar a menor das criaturas com a si mesmo. E aquele que o procura não pode se dar ao luxo de afastar-se de todas as esferas da vida do mundo. Por isso minha entrega à verdade impeliu-me para o terreno da política"
- Mahatma Gandhi, Autobiografia.
quinta-feira, 24 de março de 2011
Para uma ciência integrada na matriz de uma nova cultura holística – (8ª) breve reflexão
terça-feira, 22 de março de 2011
Para uma ciência integrada na matriz da nova cultura holística que se impõe – (7ª) breve reflexão
Para uma ciência integrada na matriz de uma nova cultura holística – (6ª) breve reflexão
Para uma ciência integrada na matriz de uma nova cultura holística – (5ª) breve reflexão
domingo, 20 de março de 2011
16 pontos para um novo paradigma de Cultura
2 - O verbo colere possui os sentidos de cultivar, cuidar; ocupar-se de; honrar, respeitar; proteger, vigiar (como acções dos deuses); habitar, morar; granjear as graças de alguém.
3 - A cultura é inseparável de um movimento de rotação, circular e cíclico, que representa o dinamismo do mundo, da vida e da existência e implica o regressar constante à origem.
4 - A cultura supõe originariamente um cultivo atento, cuidadoso, respeitoso e protector, seja do lugar onde se habita, a terra e a natureza, seja da mente, que pode assumir a forma de um respeito religioso. Daí a proximidade entre cultura, agricultura e culto .
5 - É suposto que a cultura, fundada na compreensão das leis que regem os fenómenos e a vida no seu dinamismo e metamorfose cíclicos, seja a actividade pela qual se potencia toda a fecundidade da terra, da natureza e da mente, respeitando-as, cuidando-as e recolhendo os seus frutos, no reconhecimento do seu valor intrínseco (por vezes sagrado), sem a violência de as reduzir a um mero instrumento.
6 – A afinidade original entre cultura e agricultura sugere que numa e noutra se colhe o que se semeia, o que na cultura se aplica não só à relação do homem com a terra, mas também com a natureza em geral, com os seres vivos, humanos e não humanos, e consigo mesmo.
7 - Em função da cultura que praticar, com ou sem cuidado e respeito pela terra, pela natureza e pela mente, assim o homem colherá (de colere) frutos sãos ou doentes, assim o homem terá uma terra, uma natureza e uma mente sãs ou doentes.
8 – Não é uma cultura do cuidado e do respeito que tem predominado no presente (fim de) ciclo civilizacional, ao longo do qual a cultura humana, esquecendo as suas origens cósmicas e naturais e a sua radicação no comportamento dos próprios animais , cada vez mais se viu e valorizou como o processo de separação entre o homem, a natureza e os seres vivos.
9 – Os homens objectivam a natureza e os seres vivos, humanos e não-humanos, como exteriores a si e consideram-nos como adversários a vencer, dominando-os, domesticando-os e instrumentalizando-os para fins antropocêntricos que lhes negam qualquer valor intrínseco e os privam de consideração ética .
10 - Isto aconteceu sobretudo a partir da revolução mecanista do século XVII e da primeira e segunda revolução industrial, pensando-se estar em curso o progresso histórico e linear da humanidade em direcção ao “Paraíso” terrestre da abundância económica e do domínio científico-tecnológico sobre a natureza e a vida .
11 – A ilusão e as consequências desta atitude, agravada pela explosão demográfica, pelo aumento do potencial tecnológico e pelo capitalismo económico, produtivista e consumista, liberal ou (dito) socialista, são hoje dramaticamente visíveis em todo o planeta, na poluição e esgotamento dos recursos naturais, nas alterações climáticas, na destruição da biodiversidade, na exploração e massacre dos seres vivos, humanos e não humanos, e na d,egradação da qualidade de vida social, física e mental da humanidade.
12 - Esquecendo na sua arrogância ser inseparável da terra, da natureza e dos seres vivos - relaciona-se o latino homo (homem) com humus (solo, terra), de onde deriva “humildade” - , pervertendo o sentido originário da cultura - cultura de integração harmoniosa no mundo e não de desintegração violenta - , o homem re-colhe (colere) não os frutos salutares do cultivo amoroso da terra e do espírito, mas os efeitos destrutivos da sua própria violência, que hoje e a curto prazo põe em perigo a própria vida de largas camadas da população planetária.
13 – É a Hora urgente de recordar que, de acordo com a sua própria etimologia, enquanto dinamismo que implica o constante regresso à origem como condição evolutiva, a cultura humana tem de reassumir, sob risco de se autodestruir, a vocação originária de rodar em harmonia com as leis da natureza e da vida.
14 - Isto supõe e exige uma profunda transformação do actual paradigma mental e ético, mas também social, económico e político, que possa conduzir a uma nova civilização.
15 – O novo paradigma tem de se basear no respeito pelo valor intrínseco da natureza e de todas as formas de vida, bem como no reconhecimento dos direitos dos animais humanos e não humanos à vida e ao bem-estar. A humanidade tem de reaprender a viver de acordo com as leis fundamentais da natureza e da vida, nos domínios da saúde, da alimentação, da habitação, da educação e da vida espiritual, social, económica e política.
16 - Formular, expressar e viver de acordo com estas implicações é o desafio urgente que incumbe a pensadores, artistas, cientistas e religiosos, bem como a todos aqueles que queiram contribuir para preservar e regenerar uma cultura sã e autêntica nesta encruzilhada em que a barbárie a todos ameaça.
Para um Paradigma Aberto e Penetrante
Erro, Ilusão e Modelo Bafioso
I
O que chamamos “conhecimento”, enquanto resultado das actividades intelectivas baseadas na não reflexão contém várias limitações que resultam em postulados eivados de erros, de ilusão. A aceitação destas limitações é tanto mais difícil quanto os equívocos e as aparências não forem devidamente compreendidos e enquadrados nas falsas concepções sobre o “si”, sobre o Homem, sobre o que apelidamos de Natureza. As falsas compreensões, assentes em distorções cognitivas, obrigam a paradigmas que conduzem a abordagens redutoras e que implicam práticas incorrectas no que diz respeito à Vida, ao Todo e às partes. Perder isto de vista afigura-se erro fundamental.
A pretensão de se poder espelhar a verdade, ignorando a raiz do que se pensa e faz, resulta de reedificações e translações a partir de incentivos exteriores e interiores, de signos e de processos tantas vezes levados a cabo segundo vias de menor resistência. As codificações pela mente comportam dois erros fundamentais: os de percepção e de intelecção. O conhecimento sob a forma de palavra, axioma e conceptualização, parece resultar afinal de uma tradução/reconstrução mediada pelo idioma e pelo pensamento discriminativo. Deste modo, a interpretação é presença constante nesta equação. Logo, o erro é assim inevitável. O “conhecedor” enquanto separado do “seu” objecto, dito de “conhecimento”, não compreende a simbiose da relação. O que aquele entende como sendo correctos princípios de conhecimento, que implicam um dado saber, levam-no a não compreender a redução e o condicionamento que estão subjacentes a esta operação disjuntiva. Em resumo, este “conhecimento” é redutor, consequência resultante de erros de percepção e de ideias, fruto dos esforços racionalistas, afinal escassos de racionalidade. Se forem acrescentadas as projecções dos medos, as perturbações mentais como consequência/causa de uma emocionalidade e intelectividade separativista, egotista, têm-se como resultado o exponenciar de erros e ilusões e dos riscos que daí advêm.
Se o Homem for entendido como um microcosmos interdependente do/no macrocosmos, aquele nunca poderá prescindir de uma afectividade salutar. Os sentimentos de desejo/ódio devem ser progressivamente transmutados em amor/amizade para que uma postura equânime possa surgir no sentimento de si em relação. Só isso permitirá um florescimento de uma inteligência mais subtil, menos feroz, multifacetada, mais iluminada pela luz da intuição que é abarcância profunda de fraternidade/equanimidade. Deste modo, poderá surgir uma razão equilibrada, dado que razão e emoção são um par de namorados, um par de opostos que se complementam. O crescimento de um e o definhamento de outro obrigam a desequilíbrios, a excessos de racionalidade e/ou de emocionalidade, o que implica numa vida imponderada, longe da sabedoria e da compaixão fraterna. Assim, o equilíbrio afecto/intelecto deve ser esfera que possa rolar com o mínimo de atrito.
Isso possibilitará um contemplar profundo, um mergulho em tranquila apneia para que se possa olhar e ver o que subjaz nestes modelos que hoje ainda imperam e, transmutando isso, propor-se um novo paradigma, aberto e fraterno, dadas as novas raízes que permitirão um pensar e um viver mais humanos, uma hermenêutica mais funda[1] que viabilize serem tratados fraternamente, os problemas colocados pelas epistemologias[2], pelas filosofias e pelas éticas.
Carecemos de um paradigma aberto, abarcante e tecido em conjunto, que se insira e abra harmoniosamente ao Global, ao Todo, onde impere a racionalidade aberta e não o racionalismo obtuso e redutor, de modo a propiciar um ensino de vida não formatado, logo não formatador, de modo a que possa haver uma vivência e uma educação sempre abertas ao continuo fluir do Movimento/Vida/Consciência nos seus múltiplos planos e níveis.
[1] Que se constitua também como uma epistemologia e metodologia da compreensão do Todo que possa promover uma inteligência geral, global, abarcante, e não um hiper-especialização que fragmenta e impossibilita a integração das partes no Todo a que pertencem. Uma filosofia ou teoria unitiva dos múltiplos sentidos e interdependências das partes. Enfim, o trazer à compreensão o que ficou escondido, de modo a mostrar os laços do que é tido como sendo separado, as instruções que esperam ser desveladas, encerradas nas formas simbólicas, matrizes que o Movimento desenrola.
[2] Não uma epistemologia entendida como uma parte de um tipo de lógica, e que tem a pretensão de se ocupar do estudo crítico das ciências, mas sim uma Ciência aberta e abarcante que ilumine o estudo do conhecimento das limitações do conhecimento para que este se volva Sabedoria e jamais como fonte de desligação e de sofrimento.
Para um Paradigma Aberto e Penetrante
Erro, Ilusão e Modelo Bafioso
III
Os paradigmas são modelos cujas regras implícitas são muitas vezes cumpridas por uma consciência bastante difusa das causas subjacentes e consequências operantes. Uma das razões para que tal suceda assenta no facto de um paradigma possuir zonas gradativas de inteligibilidade. Para lá de um nível de verificação empírica e do sistema de aparente coerência lógica[1] que se situa na sua zona intermédia, existe uma camada mais encapotada que é de mais difícil percepção. É essa raiz que deveremos compreender e iluminar sob pena de operarmos algo que afinal não compreendemos, o que nos tem conduzido a práticas e situações inaceitáveis. Essa camada escondida e sedimentada obriga a uma prática cega e a uma dificuldade acrescida no que respeita à emergência de um novo paradigma, de arquitectura aberta e verdadeiramente humano. Devido a essa incompreensão, os movimentos dos indivíduos tornam-se erráticos, na verdade acríticos, tendo dificuldade em se poderem estabelecer como força coesa, consequentemente conducente à necessária transformação.
Assim, é no âmago desse modelo que reside o princípio ordenador das escolhas das ideias que orientam os discursos, os modelos teóricos a propor ou a rejeitar. É essa zona que concede o predomínio a certas operações lógicas enquanto outras são afastadas ou liminarmente rejeitadas.
Aquela zona profunda é o ponto de origem das validações tácitas e das generalizações do sistema lógico eleito, o que dá lugar ao surgimento de necessidades e “verdades” manifestadas e controladas pelas teorizações e prédicas associadas. Neste jogo de regulamentação e ostracismo fundam-se, fundamentam-se e exprimem-se os postulados e ditames[1] orientadores das práticas vivenciais.
É já na esfera de conceptualização, a faixa dos conceitos-chave, que se determina a zona de inteligibilidade, onde já estão omissos ou obedientemente disciplinados os conceitos entendidos como antagónicos, tidos como incompatíveis segundo um dado modelo, necessariamente, simplista, redutor, dualista, separativista. Surgem as alegadas “preponderâncias”, as “pertinências” e as “evidências” como consequência do exercício de uma dominação que se permite excluir ou incluir, ser disjuntiva ou conjuntiva, implicar ou contradizer.
Assim se arquitecta e leva a cabo a selecção, a determinação e a conceptualização das operações lógicas que executamos todos os dias sem disso darmos contas. Assim se implementam o conjunto das categorias tidas como fundamentais de (para uma dada) inteligibilidade (CFI) e o sistema operativo que vai permitir, expor e regulamentar a intendência e o uso dessas mesmas categorias.
Deste modo, o paradigma fechado que uma dada cultura pratica tem radicalmente inscrito o que essa comunidade pensa e conhece, e por consequência o modo como age. É como um “chip” que em muito condiciona e regula as modalidades comportamentais dos humanos que lhe estão sujeitos, dificultando em grande medida um agir consentâneo com o Movimento, Vida, Consciência (MVC), e que, no que diz respeito aos últimos séculos, tem impedido que possa ser implementado um modelo aberto e harmonioso. Esse mecanismo de produzir indivíduos-máquinas, irreflectidos, arrebatados, impulsivos e coléricos, imprudentes, precipitados, obcecados, possuídos, falhos de ética fraterna. Os modelos fechados tantas vezes disjuntivos e redutores da parte e do todo, onde a triplicidade Conter/Ver/Unir[2] é recusada, impedem tendencialmente a uni-multiplicidade da MVC, recusando o pensamento sistemático tecido na abrangência.
É na zona subterrânea, acima referida, que nascem os vectores orientadores da vida social planetária. Como zona de profundidade da psique opera soberanamente. É daí que surgem as doutrinas, as teorias que se plasmam em ideologias e que se inscrevem sub-repticiamente na actividade dita consciente que mais não é do que um subproduto controlado, impedido de auto-reflexão. Será que pensamos ou somos em grande medida “pensados”? No paradigma fechado, dualista, separativista, como serão as ligações originárias que constituem os postulados? Quais as suas implicações nas determinações sobre os conceitos, teorias e discursos? Possibilitarão essas relações aberturas ou conduzirão a amplas formatações?
Tem de se operar uma tomada radical de consciência sobre estas questões. O Conhecimento, que obriga a uma praxis fraterna do ser/existir no todo não pode ser mutilador, dado como absolutamente exacto[3] ou acabado. A incerteza do conhecimento, o admitirmos o imprinting e a incerteza na ligação ideia-acto, é condição de possibilidade para uma visão mais abarcante e promissora desse mesmo Conhecimento.
Não se propõe aqui uma separação entre teoria e facto, nem uma desqualificação do especulativo em favor de conhecimentos tidos por bem assentes. Logo, muitos “ismos” têm de ser enquadrados numa desconstrução, numa continuidade desqualificadora que se agite contra as fossilizações ditas “unificadoras” que pretendem ordenar segundo um conhecimento dito “verdadeiro”, para pesado uso de muitos e benefícios de alguns poucos. Pretende-se uma salutar “anti-ciência” que possa englobar a unimultiplicidade, que se manifeste e desconstrua os obstáculos colocados nas vastas estradas do pensamento.
Temos dever e direito de reivindicar em nós uma vontade de superar a ignorância e o não-saber dos saberes instituídos pelos poderes centralizadores que impingem falsos valores oriundos de modelos subjacentes a uma qualquer “ética” putrefacta nascida das formas pastosas das máquinas pedagógicas serviçais que comercializam teorias alucinatórias consoante a vertigem dos preços e desejos baixos dos ditos “mercados”[4], essas estranhas entidades incessantemente impacientes por mais lucros, sempre agitadas e ansiosas, refractárias ao xanax e mormente ao Platão e aos costumes salutares que em absoluto ignoram, fazendo lembrar um dito da sabedoria popular: diz-me de onde provéns, dir-te-ei quem és.
Tomemos em mãos uma supralevação das mentes para uma dignificação da Consciência, arquitecte-se e implemente-se uma Ciência omniabarcante ao serviço da Vida. De postulados fracturantes e de malabarismos incoerentes já estamos servidos, nauseados e à beira do vómito. Aos Modelos Bafiosos diremos BASTA!
Bibliografia
Bohm, David, Thought as a System, Routledge, 7th Reprint, 2005.
Bohm, David, Wholeness and the Implicated Order, Routledge Classics, 1st Reprint, 2005.
Capra, Fritjof, As Conexões Ocultas, Ciência Para Uma Vida Sustentável, Cultrix, 2002.
Fromm, Erich, Beyond the Chains of Ilusion: My Encouter with Marx and Freud, Continuum, 2006.
Fromm, Erich, Ter ou Ser, Presença, 1999.
Morin, Edgar, Os Sete Saberes para a Educação do Futuro, Instituto Piaget, 2002.
Morin, Edgar, Cassé, Michel, Filhos do Céu, Entre Vazio, Luz e Matéria, Piaget, 2007.
Foucault, Michel, É Precisos Defender A Sociedade, Livros do Brasil, 2006.
[1] Por exemplo: “o homem é um ser diferenciado de todos os outros”; “o efeito não está contido na causa"; ou ainda que "o humano somente se pode definir enquanto opositor à natureza", etc, etc.
[2] Onde tudo o que está envolvido é simultaneamente discernido e pensado em conjunto.
[3] É eivado de nós lacunares, sendo por isso possuidor de graus de incerteza. Contudo, será que deveremos ignorar os “intervalos” entre esses nós?
[4] Derivados insubstanciais e purulentos de mentes distorcidas e alienantes.
quinta-feira, 17 de março de 2011
“Se há uma realidade simbólica – aquela, cuja expressão mais adequada é o mito – é ela constituída por entes fluidos e translúcidos"
“Se há uma realidade simbólica – aquela, cuja expressão mais adequada é o mito – é ela constituída por entes fluidos e translúcidos; de tal maneira fluidos, que indistinto se torna o limite entre o ser humano e o ser divino, entre o ser divino e o ser natural, entre o ser natural e o ser humano; e de tal maneira translúcidos, que através do ser homem transparece o ser animal ou o ser planta, o ser rio, mar ou montanha; ou através do ser deus transparece o ser humano ou o ser natural. Perca o simbólico a sua fluidez e a sua transparência, que sucederá? Tudo se cousifica! E a coisa, que nos mostra a sua face de terra, oculta seus veios de sangue ou de seiva, o corpóreo oculta o anímico ou o anímico oculta o corpóreo, o homem esconde o divino ou o divino esconde o humano. Quando o símbolo se cousifica, ou quando por diabólica inspiração ou sugestão, nós cousificamos o simbólico, a metamorfose já não é possível […]”
- Eudoro de Sousa, "...Sempre o mesmo acerca do mesmo".
quarta-feira, 16 de março de 2011
Para uma ciência integrada na matriz de uma nova cultura holística – (4ª) breve reflexão
Para uma ciência integrada na matriz de uma nova cultura holística – (3ª) breve reflexão
segunda-feira, 14 de março de 2011
Nota para repensar o sentido da palavra Cultura
A origem da palavra encontra-se na raiz indo-europeia kwel, que reencontramos no sânscrito chakra, o qual designa uma roda ou disco, seja a roda da lei universal (dharma), a ronda das existências condicionadas (samsāra) ou a dos centros de energia subtil no corpo humano. A cultura está assim ligada à imagem dinâmica da roda, que no plano material foi uma descoberta maior da humanidade e no plano simbólico figura a lei que rege todas as coisas, regulando a transformação dos seres e da energia vital que os anima. A mesma raiz origina o grego kuklos, que designa toda a forma redonda e de onde procedem o inglês wheel (roda) e o português ciclo. Em latim, é ainda a raiz originária do verbo colere, de onde procede directamente o latino cultura, no sentido literal de “mover-se habilmente” no cultivo da terra e no sentido figurado de cultivar o espírito (“cultura animi”, em Cícero), cortejar alguém ou cultuar uma divindade. Com efeito, o verbo colere possui já os sentidos de cultivar, cuidar; ocupar-se de; honrar, respeitar; proteger, vigiar (como acções dos deuses); habitar, morar; granjear as graças de alguém.
Repensada a partir da sua origem etimológica, a cultura surge assim inseparável, por um lado, de um movimento de rotação, circular e cíclico, que representa o dinamismo do mundo, da vida e da existência e implica o regressar constante à origem, mas não necessariamente a repetição ou o eterno retorno do mesmo (cf. Nietzsche), podendo depender desse regresso um progresso qualitativo, como acontece no “ciclo de estudos” que faz avançar o aluno. Por outro lado, a cultura supõe originariamente um cultivo atento, cuidadoso, respeitoso e protector, seja do lugar onde se habita, a terra e a natureza, seja da mente, que pode assumir a forma de um respeito religioso. Daí a proximidade entre cultura, agricultura e culto . É suposto que a cultura, fundada na compreensão das leis que regem os fenómenos e a vida no seu dinamismo e metamorfose cíclicos, seja a actividade pela qual se potencia toda a fecundidade da terra, da natureza e da mente, respeitando-as, cuidando-as e recolhendo os seus frutos, no reconhecimento do seu valor intrínseco (por vezes sagrado), sem a violência de as reduzir a um mero instrumento.
Como é evidente, não é isso que tem predominado no presente ciclo civilizacional, ao longo do qual a cultura humana, esquecendo as suas origens no comportamento dos próprios animais , cada vez mais se entendeu e valorizou como o processo de separação entre o homem, a natureza e os seres vivos, primeiro objectivando-os como exteriores a si e depois vendo-os como um obstáculo ou adversário a vencer, lutando para deles se libertar, dominando-os, domesticando-os e instrumentalizando-os para fins antropocêntricos que lhes negam qualquer valor intrínseco e os privam de consideração ética . O homem assumiu uma postura bélica e dominadora, traduzida por exemplo na designação do “campo”, pelos romanos, como ager, ou seja, campo de acção (agere), objecto feminilizado de uma dominação (imperium) viril (de vir, homem, macho) pelo senhor (dominus) da casa (domus) . Foi isto que, sobretudo a partir da revolução mecanista do século XVII e com a primeira e segunda revolução industrial, se viu como o progresso histórico e linear da humanidade em direcção ao Paraíso terrestre da abundância económica e do domínio científico-tecnológico sobre a natureza e a vida .
As consequências desta atitude, agravada pela explosão demográfica, pelo aumento do potencial tecnológico e pelo capitalismo económico, produtivista e consumista, liberal ou (dito) socialista, são hoje dramaticamente visíveis em todo o planeta, patentes na poluição e esgotamento dos recursos naturais, nas alterações climáticas, na destruição da biodiversidade, na exploração e massacre dos seres vivos, humanos e não humanos, e na degradação da qualidade de vida social, física e mental da humanidade. Esquecendo na sua arrogância ser inseparável da terra, da natureza e dos seres vivos - relaciona-se o latino homo (homem) com humus (solo, terra), de onde deriva “humildade” - , pervertendo o sentido originário da cultura - cultura de integração harmoniosa no mundo e não de desintegração violenta - , o homem passa a re-colher (colere), não os frutos benéficos e salutares do cultivo amoroso da terra e do espírito, mas os efeitos destrutivos da sua própria violência, que hoje arriscam tornar a vida de largas camadas da população, dentro de escassas dezenas de anos, insustentável no planeta.
Parece ser a hora urgente de recordar que, de acordo com a sua própria etimologia, enquanto dinamismo que implica o constante regresso à origem como condição evolutiva, a cultura humana tem de reassumir, sob risco de se autodestruir, a vocação originária de rodar em harmonia com as leis da natureza e da vida e reorientar assim a história dos homens para as fontes onde se pode regenerar . Isto supõe e exige uma profunda transformação do actual paradigma mental e ético, mas também social, económico e político, que possa conduzir a uma nova civilização. A sua base inquestionável tem de ser o respeito pelo valor intrínseco da natureza e de todas as formas de vida, bem como o reconhecimento dos direitos dos animais humanos e não humanos à vida e ao bem-estar. A humanidade tem de reaprender a viver de acordo com as leis fundamentais da natureza e da vida, com todas as implicações nos domínios da saúde, da alimentação, do urbanismo, da educação e da vida espiritual, social, económica e política. Formular, expressar e viver de acordo com estas implicações é o desafio e a tarefa que incumbe a pensadores, artistas, cientistas e religiosos, bem como a todos aqueles que queiram contribuir para preservar e regenerar a autêntica cultura nesta encruzilhada em que a barbárie a todos nos ameaça.
PENSAMOS, LOGO PODEMOS PENSAR DIFERENTE
Respeitemos todas as formas de Vida senciente e muitas mudanças ocorrerão nas relações humanas e na respectiva estrutura social e económica. A mão que se abate sobre a presa, o garfo que vota que se mate, a farpa que se espeta e aplaude no touro, o dedo que puxa o gatilho e mata, pertence a alguém e diz muito sobre esse alguém, e afecta inexoravelmente essa pessoa e todos os que com ela convivem, na escala familiar, social e civilizacional. Somos os nossos actos, os nossos actos somos nós.
O problema da criação de riqueza versus produtividade, da justiça, da corrupção, da violência, da educação, da iliteracia, das famílias desestruturadas e da redução das desigualdades económicas e sociais, não passa por mais dinheiro gasto, nem mais leis, mais tribunais, mais polícias, mais anos na escola, mais noções de economia para criancinhas, mais psicólogos e psiquiatras, mais prozac, mais despedimentos "na hora", mais privatizações, mais competição, menores remunerações ou por subsídios. Tudo isso são consequências de um sistema que assenta na violência sobre os animais, na ultra-exploração do planeta e na competição felina por riqueza, status e poder, onde tudo é válido, justificado pelo “santo mercado” sobre uma aparente capa de democracia, igualdade e liberdade. Males “combatidos” com rios de dinheiro que esvaíram o país e continuarão até ao colapso se não houver inversão atempada.
O “campo da Mãe de todas essas batalhas” é no interior de cada Homem, nenhum corruptor ou corrupto está sozinho, nenhum explorador é individualmente culpado de todos os males; nenhum formador é bom mestre se não tem em si o exemplo para oferecer, nenhuns pais sabem educar se não são coerentes; ninguém é bom patrão quando olha os seus empregados como instrumentos para o seu prazer, nem ninguém é bom trabalhador quando não ama o que faz e se sente explorado; nem nenhum cidadão minimamente esclarecido se sente motivado para dar o seu melhor num sistema que está amplamente viciado.
Esta é a sociedade dos espertos e oportunistas, que usuram, exploram e enganam com a mesma consciência com que saboreiam o bife, sem que a sua mente alguma vez se interrogue sobre a respectiva origem e o seu coração se atormente com a dor causada. O reverso dessa “moeda”, é a sociedade dos Homens que são meias-pessoas, que vivem em liberdade condicional aos fim de semana, que também inconscientemente saboreiam o bife sem se interrogarem, que trabalham no exército da produção em massa em tarefas que odeiam por remunerações apenas suficientes para os manter vivos, aliciados a consumir mais e mais, para mais escravizados ao sistema ficarem. Uns e outros, guardas prisionais ou prisioneiros na mesma “prisão”, libertam as suas ansiedades no consumo compulsivo, na mesa farta com abdomes dilatados, na tourada do pobre touro, na caça, na novela de emoções doentias, ou no futebol que os narcotiza.
E sempre, sempre pagando mais para um Estado que os formata, e endivida, com um rio de milhões de euros, para que nada mais sejam que um título académico que já para nada serve, para um sistema de saúde que engole riqueza à tonelada, para curar doenças causadas pelo sistema mórbido de alimentação humana e duma estruturação económica e social podre.
Não, este não é mais um combate político, é um combate pela Vida, pela dignidade, pela libertação daqueles que já nem imaginação têm para conceber uma organização social diferente, verdadeiramente Humana, fraterna, compassiva e ética. Onde a realização do ser humano esteja no centro, onde produzir seja parte da Vida e não o objectivo último da Vida.
Libertemos opressores e oprimidos, todos eles são vítimas!
Respeitar os animais é respeitarmo-nos a nós próprios!
Exercer violência é ser violento! Seja ela física, psicológica, económica, laboral ou social. Quem é meio-compassivo, é meio-violento!
Este é o Bom combate!
domingo, 13 de março de 2011
Para uma ciência integrada na matriz de uma nova cultura holística – (2ª) breve reflexão
[1] Cf. P. Borges, “Uma Visão Armilar do Mundo”, Verbo, Edição Babel, 2010, Lisboa, p. 206.
[2] Ver, op. cit., p. 213.
[3] Cf., op. cit., p. 213.
quinta-feira, 10 de março de 2011
Para uma ciência integrada na matriz de uma nova cultura holística – breve reflexão
Após breve meditação sobre um significado possível do que pode ser entendido como cultura, e tendo como objectivo com ela tentar relacionar a ciência, o postulado acima transcrito surgiu-nos como suporte adequado ao contributo que nos propusemos dar a este grupo do PAN. Assim, aqui ficam alguns apontamentos que julgamos poderem ser de utilidade na motivação que nos assiste ao deixarmos estas linhas: reflectir um pouco sobre uma ciência em harmonia com um novo paradigma holístico que tão urgentemente se impõe.
Reflexão primeira: Sobre a Ciência Sábia – a Ciência que lucidamente reconhece no desenvolvimento tecnológico desordenado uma fonte de sofrimento incalculável, porque agente de devastação dos recursos naturais e de degradação do meio ambiente. Há que dar voz a essa Ciência, que, não negando a sua quota-parte na responsabilização do presente estado do planeta, reconhece ainda que não basta melhorar as coisas, antes se impondo urgentemente uma mudança para um novo paradigma mental, ético, e civilizacional. Um novo modelo de abrangência tão vasta quanto o necessário para que nele brilhem e se reflictam todos os restantes re-ajustes focais – o da ciência inclusive – necessários à alteração profunda que se impõe. Há assim que dar permissão e força à Nova Ciência, para que oriente uma tecnologia ao serviço do bem comum e não do produtivismo e consumismo que se reforçam e exponenciam num crescente círculo infernal que vai devastando e absorvendo tudo ao seu redor. Mas para isso há que re-pensar os valores com que somos pensados, valores dos quais nem nos damos conta por neles nos encontramos mergulhados e também porque exploram as nossas vias de menor resistência. Há pois que abandonar as acções negligentes, motivadas por um auto-centramento egoísta que preguiçosamente se recusa a considerar a esfera mais alargada onde são perfeitamente percepcionáveis as infindáveis interacções com tudo e todos os que nos rodeiam. Há que despertar para um novo paradigma, mais exigente, certamente, mas onde as acções orientadas para o bem comum – dos animais humanos e não-humanos, e do meio ambiente de cuja harmonia ecológica todos dependem – produzirão o fruto de uma humanidade mais integrada, sabedora e realizada. Há que ver para além dos muros da família, do clã dos amigos, do grupo de conhecidos. Que a refracção da Luz do Sol interno brilhe nas necessidades desses outros, humanos e não humanos, companheiros menos afortunados no experienciar das contingências terrenas. Apostemos na eliminação do sofrimento dos nossos semelhantes e não-semelhantes. Demos espaço ao afã da cooperação, à febre benéfica da solidariedade tendente a eliminar os vírus da pobreza, da opressão e da exclusão – opressão e exclusão de raça, género e espécie. Assim, urge fazer escolhas conscientes e urge dar lugar a uma Ciência cujas raízes, alimentando-se do par intuição-razão, assegurem o desenvolvimento de acções que constituam estruturas fortes e adequadas ao florescimento de uma vida sustentável, a Vida.
quarta-feira, 9 de março de 2011
Pitágoras e o vegetarianismo
O poeta latino Ovídio falando de Pitágoras:
«Havia em Crotona um homem da ilha de Samos que se exilara da pátria pelo ódio que tinha aos tiranos... Tinha com os deuses aturado comércio... O que sabia comunicava-o a uma multidão de discípulos que em um grande silêncio o admiravam...
«Foi o primeiro que condenou o uso de comer a carne dos animais: doutrina sublime, e tão pouco apreciada, cuja paternidade se lhe atribuia.
«Deixai, mortais», dizia, «deixai de vos servir de manjares abomináveis: dão-vos os campos searas abundantes; para vós vergam de frutos as árvores com os mais belos pomos e produzem uvas as vinhas. Tendes legumes [8] dum suave gôsto, excelentes alguns quando cozidos. O mel e o leite não vos são defesos. Enfim para vós, a terra é pródiga de suas riquezas e oferece-vos toda a espécie de alimento sem que necessiteis para sustentar-vos de recorrer à morte e à carnagem.
«Só aos animais convêm o comer carne, e ainda nem todos se sustentam dela. Os cavalos, os bois e as ovelhas vivem só de ervas; apenas as feras, os tigres, os liões, ursos e lobos fazem da carne seu sustento habitual.
«Que crime horrível lançar em nossas entranhas as entranhas de seres animados, nutrir na sua substância e no seu sangue o nosso corpo! Para conservar a vida a um animal, porventura é mister que morra um outro? Porventura é mister que em meio de tantos bens que a melhor das mães, a terra, dá aos homens com tamanha profusão, pródigamente, se tenha ainda de recorrer à morte para o sustento, como fizeram ciclopes, e que só degolando animais seja possível cevar a nossa fome?
«Procedia diferentemente a idade de ouro, ditosos tempos que nós assim chamamos. Contente com as plantas e os frutos que a terra produz, o homem não manchava a sua bôca com o sangue dos animais. As aves voavam sem temor no meio dos ares... O universo tranqùilo desconhecia laços e ciladas. Tudo era paz.
«Aquele, seja quem fôr, que para desgostar os homens dos alimentos inocentes com que se alimentavam, criou o costume de comer a carne dos animais, abriu na mesma hora a porta a crimes de todo o gênero; porque foi sem dúvida pela carnificina dêsses animais que o ferro começou a ser ensanguentado. Na verdade, é permitido tirar a vida aos animais que nos atacam, mas não nutrir-nos com a sua carne. Todavia, fomos mais longe ainda; quizemos sacrifical-os aos deuses...
«Que crime tinheis cometido, ovelhas inocentes, rebanhos tranqùilos, que dais aos homens um nectar delicioso, que para os cobrir vos deixais despojar do vosso manto e que enfim lhes sois mais úteis quando vos deixam viver do que quando vos matam? Que mal faz o boi, doce animal, incapaz de vos prejudicar e que não é senão para o trabalho?
«É necessario ser ingrato, desnaturado, de todo indigno dos bens que nos dá a terra, quando vamos tirar da [9] charrua esse animal tranqùilo, o melhor dos nossos obreiros, para o conduzir ao altar a receber o golpe fatal nessa cabeça que tantas vezes gemeu sob o jugo e, por um trabalho duro e penoso, tantas vezes nos renovou as searas.
«Não bastava aos homens cometerem tão grandes crimes, precisavam ainda da cumplicidade dos deuses, crendo que lhes podia ser agradavel o sacrificio d'um animal tão útil... Levam assim a vitima ao altar; lá, recitam sôbre ela orações que ela não ouve; põe-lhe entre as pontas, que foram doiradas, um bolo feito d'aquele mesmo grão que ele cultivou, e afunda-se-lhe no seio a lâmina sagrada...
«Logo lhe tiram as entranhas ainda palpitantes, para as consultarem e lerem n'elas os segredos dos deuses. Dizei-me, homens insaciáveis, d'onde vem esta avidez que só póde fartar-se em carnes proìbidas. Deixai tão criminoso uso. Segui os conselhos que vos dou. Sabei que, quando comeis a carne do boi que acabais de degolar, comeis aquele que vos lavrou o campo. Pois que é um deus que me inspira, só falo segundo a sua vontade...
«As nossas almas são sempre as mesmas, embora tomem formas diferentes conforme os corpos que animam. Que a piedade não seja sacrificada à vossa gula, que para vos saciar não expulseis dos seus corpos as almas dos vossos pais nem vos alimenteis do seu sangue...
«É acostumar-nos a derramar o sangue humano degolar animais inocentes e ouvirmos sem piedade seus tristes gemidos. É desumanidade não nos comovermos com a morte do cabrito, cujos gritos tanto se assemelham aos das crianças, e comermos as aves a que tantas vezes démos de comer. Ah! quão pouco dista d'um enorme crime!
«Funesta aprendizagem! Deixai tranqùilamente o boi lavrar a terra e seja a sua morte o termo natural da sua velhice. Contente-nos o velo do rebanho que nos livra da atmosfera agreste, e o leite que as cabras dão para nos nutrir: parti os vossos laços e as redes, não mais o visco engane a ave crédula. Não mais se leve ao cêrco o tímido veado, perturbado com as penas que o espantam, e que não mais se oculte o anzol em traiçoeiro engôdo. Matai os animais que podem fazer mal; mas contentai-vos em só lhes dar a morte e não os comer, e que só vos sirvam alimentos legitimos.»
- Ovídio (transcrito de Jaime de Magalhães Lima, O vegetarismo e a moralidade das raças, Porto, Sociedade Vegetariana - editora, 1912).
terça-feira, 8 de março de 2011
3.ª Carta de um humano
No XXII Encontro Inter-Religioso de Meditação, façamos acontecer o diálogo na meditação activa enquanto abertura ao outro de nós mesmos e ao mundo
(A Agostinho da Silva e Raimon Panikkar)
Filosofia, Ciência, Religiosidade e Espiritualidade parecem surgir como evidências borbulhantes de um fundo comum que obriga os humanos a sustentar sistemática e ininterruptamente uma diversidade de perspectivas sobre o Mundo, a Vida/Movimento/Consciência como epifania. Ao longo dos tempos, as várias culturas que têm surgido parecem ter sempre pugnado pela busca de uma felicidade que parece continuamente escapar[1], evidenciando-se toda uma diversidade de modelos cognitivos e de propostas várias decorrentes das suas aporias de apreensão[2]. Hoje, na voragem alucinante das sociedades tecnológicas[3] vivenciamos o declínio de mais uma promessa: a do progresso ilimitado[4]. Quando o sujeito se retira do ter – a cultura do desejo, motivada pelo «incitamento perpétuo da procura, da comercialização e da multiplicação indefinida das [falsas] necessidades»[5] – e se abre a ser[6], então é ser em relação.
Este, vivendo por inerência em dinâmicas interactivas de mythos e lógos, no mister de se dizer, remete-se necessariamente para um constante diálogo onde se poderão adivinhar filamentos condutores (sūtras) que sustentam as pétalas de uma rosa do deserto, essa figura do silêncio que nada dizendo tudo permite escutar. O encontro das mundividências humanas surge assim como corolário obrigatório das suas actividades, como necessidade de vital importância para a tonificação depurativa das culturas intervenientes nos complexos processos relacionais. Quando os homens se acham, necessariamente as “religiões” encontram-se também. Nem sempre de forma pacífica como sabemos, mas uma coisa parece certa: as sínteses, tão inevitáveis, têm sempre surgido a partir de sincretismos[7]. O homem, entendido por Panikkar também como «um acervo de relações», como «um animal loquans», representa-se então como «um ser dialógico»[8]. Dar todo o contributo possível para que se viabilize uma multifacetada abertura é hoje de uma premência absoluta, de modo a que muitos[9], em espírito de abertura, possam dar o seu melhor contributo ao diálogo da/na Vida.
Nessa brecha, que é condição de possibilidade para uma reunião fraterna, o aprofundamento das questões tem de brotar do mais recôndito do humano, do intra para que se possa constituir como inter discurso de harmonização. Esse diálogo tem de ser encontro profundo e, porque «provém do coração dos dialogantes», é por isso mesmo síncrono com a Natureza, fazendo com que ela queira com os intervenientes. A actividade resultante do lógos humano – que em si não poderá abarcar a profundura – estará ainda assim, paradoxalmente, enraizada no símbolo e no mythos.
O diálogo implica também a mútua compreensão baseada numa escuta profunda (śravaṇa), numa análise (manana) e na realização prática[10] (nididhyāsana). Obriga a uma relação profunda entre os dialogantes onde «cada homem deve ser considerado como uma fonte única de auto-compreensão», sendo o locus fundamental para que esse encontro se possa localizar «entre a mera subjectividade e a pura objectividade». Assim, a sua humanidade realizar-se-á mais plenamente na confluência desse encontro. Neste contexto, nada deve ser “privado”, nem homem, nem religião nem, por maioria de razão, o próprio diálogo. Não sendo a verdade algo de objectivo com finalidade e propósito imediatista, a sua demanda é no entanto tarefa obrigatória do humano em si mesmo e como parte integrante da cosmo polis. Assim, é também uma actividade política, no seu sentido mais elevado, profundo e penetrante, nobre acção que resulta da contingência do limite de um dado patamar de consciência (apelidado por vezes como “condição humana”), por vezes de diálogos anteriores que remontam a anterioridades temporais de tamanha extensão que as enquadramos na proximidade das “origens” da humanidade. Alforria/paz, totalidade/equidade/união, remetem para um hólos, um todo, uma visão abarcante onde o diálogo é um maravilhoso antídoto para o solipsismo egotista.
O diálogo é ainda um catalisador que depura e também um pontifex que sustenta a comunicação dos moradores das paliçadas erguidas, facilitando a proximidade das tradições da grande família humana. Abre novas redes pela partilha da virtude, rejeita o proselitismo e vê no outro não somente mais um buscador de verdade mas também uma fonte de sabedoria. Dialogar assim é um acto da mais pura religiosidade, assente num entendimento holístico da Vida (logo também do homem), num complementaridade entre teoria e praxis, sujeito e grei, política e espiritualidade, epistemologia e ontologia, transcendente e imanente, conduzindo assim um processo alquímico da maior importância. Se entendermos que «toda a religião é um encontro»[11], tem de ser um encontro dinâmico de função espiralada cuja relação causal, embora subtil e inacessível ao entendimento comum, parece constituir o homem como agente dessa mesma causa e simultaneamente dos seus efeitos. E, porque é fraterno, esse diálogo jamais se deixará tocar pela indolência.
Nesses diálogos-encontros, as diversidades das miríades de especificidades são as evidências de um permanente processo, de um sistema em constante transmutação, sendo os seus resultados substancialmente de carácter provisório (dado aqueles serem funcionalmente incompletos), tanto nos seus aspectos racionais como simbólicos e míticos. No entanto, parecem remeter sempre para as camadas mais fundas, mais subtis da nossa consciência, ou seja, contribuem para um aprofundamento da nossa humanidade, tornando-nos mais simbióticos, internamente mais “polidos”, possibilitando um eco menos imperfeito da Vida em nós.
Nos patamares de consciência que detemos, dentro da onda de vida em que estamos integrados, coloquemo-nos face a face com este desafio, que não é só desta Era de Aquário que agora se inicia ou deste Kali Yuga que ainda não há muito começou. Diálogo e humanidade, sendo um par de dançarinos perenes, implicam que executemos essa arte com fraternidade, com maestria e humildade, buscando o Silêncio da Rosa que é a fonte para onde a Saudade inabalavelmente nos conduz.
«O diálogo, inevitável e indispensável, não é só um imperativo social, um dever histórico: é a consciência de que para sermos nós mesmos, simplesmente para sermos, devemos entrar em comunhão com a terra, abaixo, os homens a nosso lado, e no alto, os céus»[12].
[1] Talvez porque a tentem agarrar e chamar-lhe coisa sua, remetendo-se para um futuro como fuga para a frente: Imaginando-se o condutor do seu destino, é muitas das vezes meramente conduzido pelos seus apetites simplesmente egoístas.
[2] Parafraseando Antero de Quental, cada homem tenderá, segundo um dado modelo, a puxar um fio do manto de luz com que o absoluto se vela quando ocorre a vã tentativa de o capturar.
[3] Convém lembrar aqui as profundas assimetrias existentes em todo o planeta onde todo o tipo de carências são por demais evidentes. Enquanto uns degradam o planeta outros morrem ou sobrevivem em patamares assustadores de pobreza.
[4] Temos hoje um vislumbre do que temos feito enquanto civilização tecnológica e economicista, baseada em duas premissas que o paradigma actual carece de modo a poder funcionar: hedonismo radical (o prazer máximo, entendido como condição de “felicidade”) e egoísmo como condição de possibilidade de alegadamente conduzir à “harmonia” e à “paz”. A satisfação dos desejos subjectivos levados ao extremo, como norma ética conducente a uma suposta “vida boa”, quão longe de uma eudaimonia (felicidade por equanimidade, como objectivo da sabedoria; contentamento estável), da ataraxia (como estado de paz e harmonia por libertação das paixões) por epoché (suspensão do juízo redutor), é uma falácia que hoje amargamente se experiencia nas assimetrias profundas de uma civilização globalizada. Curiosamente, nenhum dos grandes mestres, conhecidos da humanidade, alguma vez indicou algo que semelhante fosse. Parece assim ser urgente uma inversão progressiva destas coordenadas (Kant, Thoreau, Schweitzer, Singer, Latouche, Capra e tantos outros), um novo paradigma que privilegie não o domínio mas sim o equilíbrio, o fraterno viver neste grande sistema que Lovelock denominou acertadamente como Gaia. Panikkar, achando a eco-logia talvez insuficiente, propõe um diálogo profundo com a Terra a que deu o nome de «ecosofia». Cf. Raimon Panikkar, O Diálogo Indispensável, com prefácio de Paulo Borges e prólogos de Enrique M. Magdalena e Pierre-François de Béthune, O.S.B., Zéfiro, 2007, p. 45).
[5] Cf. Gilles Lipovetsky, A Felicidade Paradoxal, Ensaio sobre a Sociedade do Hiperconsumo, Edições 70, 2007, p. 7.
[6] Sobre esta questão, ver Erich Fromm, Ter ou Ser?, Editorial Presença, 2ª Edição, 2002.
[7] Como diz Panikkar, «que seria hoje o cristianismo sem o profundo sincretismo que brotou das suas raízes hebraicas, gregas, romanas e germânicas?». Cf. Raimon Panikkar, op. cit, p. 39.
[8] Cf. Panikkar, idem, p. 41.
[9] Panikkar adverte que «as “religiões” não têm o monopólio da religião». Não cabendo aqui abordar, mesmo que muito superficialmente, toda esta problemática, diremos no entanto que o diálogo implica sempre o deixar abertas portas e janelas, numa evidência de vitalidade sem pretender a dominação; deverá constituir-se como campo de uma abertura total onde os problemas importantes e comuns a todos os seres sencientes, possam ser tratados como parte integrante, objectiva e subjectiva do grande ágape da Vida, nada devendo ser descartado a priori.
[10] Cf. Panikkar, idem, p. 64, onde este propõe como tradução, respectivamente “escuta”, “reflexão” e “contemplação activa”. Embora em outro contexto, sobre esta tripartição ver Chandradhar Sharma, A Critical Survey of Indian Philosophy, Motilal Banarsidass, Delhi, 12ª Reimpressão, 2009, p. 13.
[11] Cf. Panikkar, idem, p. 99.
[12] Ibidem, p. 107.
segunda-feira, 7 de março de 2011
"Recuperar o animismo" - para uma ecosofia
"[...] entendo por animismo a experiência da vida em continuidade com a natureza. Toda a entidade natural é uma célula vivente, parte de um todo e reflexo do todo ao mesmo tempo. Não só as plantas e os animais são viventes, mas também as montanhas e as rochas; como o espírito, assim também a matéria é vivente"
- Raimon Panikkar, "Recuperar o animismo", in Ecosofía. Para una espiritualidad de la tierra, Madrid, San Pablo, 1994, p.149.
terça-feira, 1 de março de 2011
"A ética é a responsabilidade por tudo quanto vive, estendida além de todos os limites"
"O homem só é verdadeiramente ético quando obedece a necessidade de ajudar a toda vida a que pode ajudar e se envergonha de causar dano a todo e qualquer ser vivo. Ele não se pergunta até onde esta ou aquela vida tem valor para merecer participação, nem se, ou até onde, ela ainda é capaz de sentir. Para ele a vida em si é santa. Não arranca nenhuma folha das árvores, não quebra uma flor, e toma cuidado para não pisar nenhum inseto. Quando no verão trabalha à noite à luz da lâmpada, prefere manter a janela fechada e respirar um ar pesado a ver os insetos caírem um após o outro na sua mesa com as asas chamuscadas.
Quando após a chuva caminha pela estrada e vê a minhoca que se extraviou, ele se lembra de que ela terá que secar ao sol se não tiver tempo de encontrar terra em que possa esconder-se, e retira-a da pedra mortífera para a grama. Quando passa por um inseto que caiu numa poça, ele trata de estender-lhe uma folha ou um talo a fim de o salvar
Não teme que zombem dele como sentimental. É este o destino de toda a verdade, que antes de ser reconhecida ela seja objeto de riso. Antes passava por loucura admitir que os homens de cor seriam verdadeiros homens, e que teriam que ser tratados humanamente. A loucura passou a ser sabedoria. Hoje é considerado como um exagero estender até suas formas ínfimas a contínua atenção a todo ser vivo, como uma exigência da ética racional. Mas há de chegar o dia em que se há de julgar estranho que a humanidade tenha precisado tanto tempo para entender o dano inconsiderado à vida como incompatível com a ética.
A ética é a responsabilidade por tudo quanto vive, estendida além de todos os limites"
- Albert Schweitzer, A ética da veneração diante da vida (1955), in Leonardo Boff (com a colaboração de Werner Müller), Princípio de Compaixão e Cuidado. O encontro entre Ocidente e Oriente, Petrópolis, Vozes, 2000, pp.88-89.